domingo, 7 de abril de 2013

O Malkaviano e a Maverick preta.

- Louco? Então acha que sou louco? - Perguntava calmamente o homem ruivo de cabelos desarrumados e barba a fazer sentado no sofá de frente para o homem de cabelos grisalhos. - Mal me conhece e me julgas assim?
- Vi e senti coisas que uma pessoa “sã” jamais poderia! – Continuou falando enquanto levantou do sofá e começou a caminhar de um lado a outro – Quando fazemos a passagem, a maioria escolhe adormecer até que esteja pronto para renascer. Eu não! Eu era curioso demais para isso! Eu fiquei acordado para sentir. Por quase um minuto, Edgar ficou calado com o olhar atônito como se estivesse olhando para si próprio sendo abraçado.
- Não sabes o que é implorar para Deus para que ele o perdoe e acabe logo com o seu sofrimento e, então, descobrir que Ele não se importa com você! Você apela então para o diabo. Chama por Lucifer, Nick, Belzebu, Bode Preto, Diacho, Anhangá, Satanás, Capeta, Tranca-rua, Tinhoso, Maligno... enfim, todos os nomes que conhece para o coisa-ruim, mas ele também o ignora. Você fica imaginando o porquê de ele não querer a sua alma, mas só depois percebes que você não tem mais alma. Aquela dor insuportável que está sentindo em cada célula do seu corpo como se ela fosse rasgada com uma navalha cega é a dor do desprendimento da sua alma. Você está se transformando em um corpo vivo e sem espírito. Isso significa que você não pertence mais ao paraíso e ao inferno! Agora você pertence apenas à noite.
O descendente de holandês caminha em direção à porta e enquanto a abre olha para trás. Olha pela última vez para o dono daquela pensão em que passou o dia na pequena cidade de Lavras em Minas Gerais.
- Não me lembrava mais dessa foto. Foi bom recordar do meu rosto mortal. Adeus seu Zé. – O vampiro então saiu para o breu da noite na BR 265. Lá fora seu Maverick preto 75 o esperava para pegar estrada. Na sala de espera da pensão ficou o telefone com o número 190 discado sem completar a ligação, ao lado da foto de Edgar Berenschot como procurado pelo assassinato de 9 mulheres na década de 80 em Goiás. Então o corpo sem vida do Sr. José pende para frente e despenca por sobre a mesa de centro onde estão o telefone e a foto.

domingo, 29 de agosto de 2010

MAÉVEM, A BARDA VOADORA.

Era mais uma noite agradável na cidade de Javalix. O calor do verão refrescado pela leve brisa do norte criava um ótimo clima para velhos amigos se reunirem na taverna de Clarin e tomarem umas cervejas.


O anão estava muito ocupado, correndo para lá e para cá com a bandeja sempre cheia de pesadas canecas de cerveja da melhor qualidade., Era assim que tinha que ser a cerveja do seu estabelecimento: a verdadeira bebida dos deuses. Isso agradava não só a si, que era um invejado bebedor, mas a todos os seus clientes que, além disso, eram seus amigos de longa data.


Quase todas as mesas estavam ocupadas naquela noite por pessoas que vinham de toda a região. No pequeno palco havia uma cadeira muito bela de madeira vermelha adornada de ouro e prata com uma grande e fofa almofada verde musgo sobre o assento. Na sua frente havia uma pequena mesa, também de madeira vermelha, coberta por uma toalha verde com um nome bem conhecido bordado em vermelho e dourado: MORPHEUS.


Logo em frente ao palco havia uma mesa grande com muita comida e bebida onde estavam sentados os convidados especiais do halfling. Na ponta estavam os dois grandalhões, Groo e Gronso, do lado esquerdo deles estavam Erthay, o necromante, e Maévem, a barda. Do outro lado estavam Mong e Kátuz, os góblins mais temidos de todos os vales, e Jeafinlas, ou como era conhecido, Jeaf, o elfo. Todos esperavam pela chegada de Morpheus que, depois que todos resolveram parar de se aventurar pelo mundo atrás de emoção e dinheiro, passou a escrever um livro com suas memórias sobre as diversas aventuras que teve com seus grandes amigos, e nessa noite ia, pela primeira vez, ler um trecho delas para todos.


Não demorou muito e o halfling entrou na taverna todo bem vestido carregando um grande livro de capa marrom e bordas de prata. Ele vestia um belo colete de cetim vermelho por cima de uma camisa verde de seda. Suas calças e botas eram marrons e sua longa capa vermelha e dourada combinava com seu belo chapéu com longas plumas amarelas.


Ao subir ao palco, foi aplaudido por todos que estavam na taverna e, depois de agradecer o carinho dos amigos e admiradores, abriu o livro, limpou a garganta e iniciou a leitura:


- Nessas minhas andanças pelos reinos, tive a oportunidade de ser proprietário, em sociedade, de um belo navio: o famoso CANIBAL NECROMANTE. Era um navio que, assim como eu, se tornou uma lenda devido as seu histórico de batalhas vencidas e de ter sido um cassino vagabundo. – O público riu com a comparação do halflin com o navio.


- Porém – continuou – o causo que vou lhes contar é do dia em que ele "quase" – e com os dedos fez sinal de aspas para enfatizar bem a palavra: quase - veio a pique. Pros ignorantes que não sabem o que é vir a pique, é afundar. – completou olhando para todos na taverna para ver a reação de seu público. Erthay pois a mão no rosto e riu do jeito de seu amigo – Esse halfling não muda! – pensava ele.


- Tudo graças a uma barda inútil, burra e péssima de cama, ou melhor, de estábulos. – acrescentou ele erguendo a voz e encarando Maévem que ficou muito vermelha de fúria e tentou levantar para acertar as contas com o halfling, mas foi detida por Groo – Deixa ele, Maévezinha! Ele está apenas brincando. – ela ainda muito furiosa cruzou os braços e permaneceu sentada, pois não havia como escapar das mãos daquele guerreiro tão forte.


- Estávamos ancorados em Suzail, resolvendo alguns problemas, quando Maéven encontrou um velho baú em suas andanças pela cidade. Ela resolve, então, levar o baú até a minha digníssima presença, numa taverna no porto, já que o velho baú estava trancado e a toupeira não tinha conseguido abrir. – deu uma pausa para avaliar a reação de todos e viu que suas palavras divertiam as pessoas, menos à barda que o encarava furiosa – O que será que ela tem? – pensou ele rapidamente, mas logo voltou a se concentrar na leitura. - Maévem me perguntou se eu poderia abrir o baú para ela, mas não na taverna, e sim no navio. Em troca desse grande favor, dividiria comigo o conteúdo do baú. Eu levado pela ganância e pelos litros de cerveja que Clarin tinha me pagado, não pensei muito nas consequências e aceitei. – Nessa hora o anão deu uma forte risada e ergueu sua grande caneca cheia de cerveja brindando as palavras de seu amigo e tomou tudo num gole só.


- Levamos o baú até seus aposentos, e díga-se de passagem: um verdadeiro chiqueiro dentro do navio. – mais uma vez Maévem tentou se levantar para protestar, mas foi o necromante que a conteve desta vez – Deixe-o, Maévem! Até parece que o não conhece! – A fechadura era muito difícil de ser aberta! Mexe pra lá, vira pra cá até que eu escutei um clique. – e parou de falar repentinamente com os olhos arregalados. Toda a taverna parecia ter parado. Um homem que levava a caneca de cerveja à boca chegou a derramá-la sem nem perceber, esperando pela continuação da história. O halflin abaixou a cabeça e fechou os olhos e com uma voz muito comovente, continuou:


- Nesse momento agradeço a Mask pela minha vida. – o silêncio foi quebrado por varias vozes ao mesmo tempo dizendo: OH! – Sim, pois ao abrir o baú, houve uma grande explosão. Senti cheiro de pêlo de Halfling queimando e de repente estava eu deitado sobre uma barraquinha de peixes no cais do porto a centenas de metros do navio. Logo veio um homem, que suponho ser o dono da peixaria, com uma cara de espanto. Ele gesticulava e fala comigo por nada, já que eu só ouvia um zumbido agudo.


Naquele momento todos comentavam o vigor do halfling de ter escapado de uma explosão de tamanha magnitude e estar ali hoje contando esta história para todos na taverna. Ele esperou um tempinho para que todos se acalmassem e limpando a garganta, continuou a leitura:


- Mas o que me doeu mais foi ver meu lindo navio, todo fodido pegando fogo e com um enorme buraco no casco. – todos se emocionaram com o halfling que tirara o chapéu em respeito ao seu amado navio e olhava para o nada como se pudesse ver a imagem dele em chamas no porto de Suzail - E no alto, o que parecia ser uma estrela cadente cruzando o céu da cidade, era na verdade a barda pegando fogo caindo bem longe.


A barda não aguentou mais os insultos de Morpheus e com sua destreza agarrou a caneca de madeira do seu amigo grandalhão e arremessou contra o halfling acertando-o em cheio na cabeça. Todos na mesa caíram na gargalhada, inclusive Morpheus que saltou do palco e se juntou a eles para mais uma noite de diversão na taverna de Clarin.




Autor: Rafael Clemente

Adaptação: Rockão Gobi

Trecho retirado do livro "Memórias de Morpheus".



Obrigado pela contribuição, Rafael. São histórias inesquecíveis estas dos saudosos jogos de domingo com seu irmão mestrando para nós. Continue escrevendo as memórias do Morpheus. Essas histórias são fascinantes e, como disse o Balão (Fabiano), nos dão vontade de voltar a jogá-las!

Rockão Gobi

terça-feira, 27 de outubro de 2009

O Livro





















Capítulo I

A velha biblioteca exalava um odor de couro, papiros, papéis velhos e amarelados, além da grande quantidade de poeira que os visitantes achavam que poderiam preencher os velhos mares. Qualquer pessoa alérgica que ali adentrava, passava semanas espirrando por sentir aquele odor, mas para os amantes do conhecimento era como se tivesse encontrado o amor de sua vida ao ver a extensa coleção de livros, crônicas, poesias e documentos atuais e do Velho Mundo que se amontoavam e pareciam disputar o espaço das imensas estantes que pareciam se estender ao infinito. Todos que adentravam a sala de estudos sentiam-se impelidos em olhar para cima, e eram tocados por um êxtase de fruição diante do teto abobadado, e seu imenso vitral que parecia muito mais vivo quando era iluminado pela luz prateada do luar. Via-se no vitral, uma furiosa batalha entre um grifo e um dragão vermelho, mas com tamanho detalhamento que se tinha a impressão que as figuras ali representadas iriam se mover a qualquer momento. A sala arredondada em formato de torre era somente uma das partes da imensa biblioteca, mas ali era o espaço onde eram colocados os livros que poderiam ser analisados e estudados. As outras partes da biblioteca eram restritas aos clérigos do deus do conhecimento, e onde eram guardadas as cópias originais dos livros, documentos mais importantes e todo e qualquer material que não poderia ser manuseado por qualquer um que não tivesse autorização do grão-mestre dos clérigos.

Sentado solitariamente em uma velha mesa de carvalho, e rodeado de imensas pilhas de livros, um acólito gnomo as revirava ansiosamente quando parou subitamente por sentir uma presença estranha naquela sala e que levou seus olhos imediatamente em direção à porta. Um vulto familiar jazia encostado no batente da porta. Ah, você! – exclamou rapidamente, enquanto revirava os velhos livros como se procurasse algum em especial.

– Sente-se que eu vou contar-lhe a história como ela aconteceu... Mesmoqueeunãoestivesseporláseiqueéverdadeporcontadeumbardoviajantequemecontou. (mesmo eu não estando lá). Oh, sim! Aqui está, velho amigo. Não, não diga nada. Basta sentar e ouvir.

O gnomo tomou em suas mãos um velho livro surrado, com capa de couro vermelha. As letras do idioma élfico da capa adornada brilhavam em um tom dourado pálido refletindo a luz das velas, onde estava escrito “A ojgumoi liüj tadliüj a maliarlieü liü Lqüüjingm lideniliü tani nipmoli lii dolii” (A história dos pecados e da redenção do Ljosaltr maculado pela lágrima da vida), que logo foram apagadas pelo sopro que espalhou a poeira das velhas páginas pelo ambiente. Abrindo o livro ao meio, o acólito iniciou sua procura desajeitada por alguma página em específico, que ao encontrar exibiu uma expressão de satisfação, abrindo a boca e levantando o dedo, parecendo que ia dizer algo, logo desistindo ao ver a expressão de impaciência de seu misterioso visitante. Voltando seus olhos à página, sussurrando com um tom de voz solene como se lesse algum texto sagrado, percorrendo as letras manuscritas com o dedo indicador, pausando ao virar da página e mostrando uma rica ilustração para seu companheiro de leitura.

– Veja! Este é o elfo. Apesar da ilustração não estar perfeitamente como ele é, ela transmite o espírito forte deste clérigo.

Ao perceber que não chamou muita atenção com a imagem que acabara de mostrar deixou cair os ombros resignado, e voltou à sua leitura, aumentando seu tom de voz, em uma tentativa de captar a atenção de seu interpelador.

... A parca luz alaranjada das tochas e da lareira ilumina o ambiente, enquanto diversas silhuetas se movimentam ritmadas com o som do alaúde de um bardo desconhecido naquelas paragens, mas que cativou rapidamente seu público, que dançavam quase como sombras, indistinguíveis da penumbra que banha o ambiente. A taverna está incomumente cheia, devido às festividades de comemoração do bicentenário da batalha contra uma horda de homens do oeste que havia destruído aquele vilarejo, uma festa obrigatória, mas de poucas alegrias, pois somente através de um imenso esforço conjunto, unindo ainda mais as pessoas daquela pequena comunidade que se formara em uma das trilhas de mercadores que passavam pelo grande deserto que se iniciava na fronteira, transformando-a hoje, nesta opulenta cidade. A riqueza trazida pela extração mineral que atraiu os primeiros moradores foi justamente o motivo da disputa que dividiu a cidade, ainda em formação, em partidários de duas famílias poderosas até os dias de hoje: os Malhaferro, uma família de anões da planície, grandes forjadores e poderosos guerreiros, que acreditam na herança racial daquelas terras; e os Malford, a primeira família humana a pisar naquela região e que era conhecida em toda a extensão do mundo por seu senso de justiça e códigos familiares rígidos, e também por formar os mais fervorosos paladinos de toda terra civilizada. Contudo, o fragmento da família que ali se instalou era justamente uma mancha no brasão da família, devido seu senso distorcido e suas motivações mesquinhas. Mas além de seus bens materiais acumulados ao longo dos anos, esta família atualmente contava com um trunfo: Nathan. Este jovem rapaz, que no alto de seus dezoito anos, já demonstrava em sua face precocemente barbada e marcada uma vida difícil e de imensa dedicação ao seu deus, fora o único da família que se desviou dos caminhos planejados por seus pais e tornou-se um clérigo. De certa forma, servia como um diplomata entre as duas partes da família, sendo admirado por ambos os lados por sua conduta honrada. Neste dia, Nathan estava em um canto escuro da taverna da cidade, destituído de sua brilhante armadura, trajando apenas seu robe para não atrair atenção indesejada, observando toda aquela movimentação dos simpatizantes e descendentes de cada família ocupando lados distintos do salão. Decidiu pedir uma caneca da famosa cerveja, somente com o intuito de pagar por sua estadia naquela mesa. Aquele lugar não era como as tavernas de luxo dos grandes centros, mas seu grande espaço era utilizado todo ano como um salão comunitário, principalmente por conta da simpatia, atendimento atencioso e do desprendimento de seu dono, Preston.

Do outro lado da cidade, em um antigo templo vivia Alinthas, o clérigo do Deus do Conhecimento, que ali se encontrava justamente por uma estranha escolha ao pedir ao clero de sua igreja para que fosse removido para aquela cidade. Mesmo aparentemente não concordando, seus superiores cederam ao seu desejo em pagamento aos seus imensos préstimos ao seu deus e sua fé. Mas as intenções deles estavam além do atendimento de um capricho de um clérigo novato. Eles pretendiam ter alguém suficientemente fiel ajudando a cuidar da velha biblioteca, e porque seria um tanto quanto irônico enviar para uma cidade cheia de conflitos entre humanos e anões, justamente um elfo, e eles gostariam de ver o resultado deste acontecimento inusitado para levantar dados, classificar e catalogar tais desdobramentos. E enquanto lembra-se desse fato, Alinthas mantinha sua expressão taciturna enquanto observa a cidade da sacada de seu quarto no templo, tentando entender o objeto que repousa em suas mãos. A ele havia sido entregue um estranho livro, com sua capa feita de folhas compridas e pontiagudas de alguma árvore desconhecida, unidas em uma densa trama. Nesta peculiar capa, estava escrito na língua esquecida dos dragões: “Sad ex narshex liaxusbia bolemfia flusmfe ia xiafia kuskrax a kamshiakusjiamfa be quusbe bax Lgaxerfl iamfliathoia ea jekoreba phiare rithlusje be quusbe xajiamfia phele ma natha phialiakial” - que quer dizer: “Sob as folhas reside durante trinta e sete ciclos o conhecimento da vida dos Ljosaltr entregue ao maculado pela lágrima da vida somente para no fogo perecer”. O elfo estranhava o fato de um livro tão pretensioso ter tão poucas páginas - não mais que vinte -, e ser impedido de ver seu conteúdo, não por ter cadeado, feitiço aparente ou qualquer outra forma visível ou detectável que impeça qualquer um o ler, o livro simplesmente não se abria. Talvez a mensagem da capa fosse um enigma. Afinal, o sentido dos trinta e sete ciclos se tornara óbvio. Mas qual era o conhecimento dos Ljosaltr? O que significava "maculado pela lágrima da vida”? E a última parte, era uma sentença, uma predestinação ou parte do enigma? Sem respostas, Alinthas não escondia seu desconforto e o peso daquele fardo, pois sua preocupação se voltava para o prazo e a ordem dada pelo homem que lhe entregou aquele livro. Ele deveria se dirigir para aquela distante e próspera cidade, além de conseguir ler as palavras contidas naquele livro em trinta e sete dias. Sem respostas ou qualquer pista do que se tratava. Apenas sabia que tinha trinta e sete dias. E este prazo terminava naquela noite.

Absorto em seus pensamentos, Nathan, teve sua atenção subitamente desviada por um estranho visitante que acabara de adentrar o ambiente. Parecendo que havia trazido uma tempestade em suas costas, como um arauto dos deuses, a imensa figura com os seus longos cabelos negros grudados em sua face e sobre seus ombros cobertos com pele animal, pingava sobre o assoalho parecendo trazer intencionalmente parte daquela chuva inesperada para compartilhar com os foliões que não haviam percebido a mudança climática repentina, enquanto o vento invadia a porta do ambiente, espalhando os sons e o cheiro de chão molhado pelo recinto. Acostumados com forasteiros, os poucos que perceberam sua entrada logo voltaram para sua dança ou bebedeira assim que ele sentou em uma mesa próxima à porta. Porém, Nathan, manteve seus olhos sobre o estranho. Sendo servido rapidamente por uma graciosa garçonete armada com uma bandeja cheia de canecas vazias e cheias para agilizar o serviço naquela ocasião; mas logo ela se afastou, após ter recebido uma resposta aparentemente ríspida. Com sua bebida em mãos, seguia batendo-a impacientemente na mesa, até o momento em que explodiu em um grito, fazendo com que todos parassem e se calassem imediatamente.

- Pare com este barulho!

Começou imediatamente um burburinho quando o estranho se fez perceber. Um dos clientes da taverna, um rapaz que trazia o brilho característico da juventude e sua imaturidade, recoberto com uma pesada armadura e um arsenal incomum para sua média estatura, levantou-se e gritou desafiando-o, em favor do bardo que já tentava apaziguar os ânimos em vão.

- Seu bastardo, filho de uma meia-orc! Quem pensa que é para estragar a festa dos outros?

Certo de que intimidaria o estranho assim como sempre fazia com outros arruaceiros, o jovem rapaz não pôde conter o suor que começava a brotar em sua testa quando esteve frente a frente com seu adversário que já se encontrava em pé ao lado da mesa, levantando seus olhos que estavam à altura do largo e forte peito arrepiado pelo frio, para poder encará-lo, vendo-o apenas abaixar seus olhos emoldurados por uma máscara impassível. O vento parecia sibilar aos dois que se enfrentavam através do olhar, invadindo o ambiente e apagando todas as velas do salão e deixando as luzes das casas e estabelecimentos próximos adentrarem no ambiente pelas frestas das paredes de madeira desgastadas pelo tempo. A invasão de luz pintava aquele homem gigantesco, dando uma aparência ainda mais intimidadora. Sua pele ricamente adornada por tatuagens e pinturas tribais, inúmeras cicatrizes de batalhas e caçadas que apareciam rapidamente naquela luz efêmera eram o motivo de tão grande mudança em sua aparência. Aqueles momentos de tenso silêncio pareciam ser eternos, quebrados apenas pelos olhares elétricos dos dois confrontantes e pela voz do bardo, que tentava dispersar as pessoas e continuar sua apresentação, sentando-se novamente em seu banco e parecendo querer encontrar notas mais agradáveis aos ouvidos do desconhecido. A tensão foi somente quebrada pelo som de lâminas saindo de suas bainhas, sob protestos e incentivos de algum dos companheiros do jovem cavaleiro. Enquanto olhos faiscavam, pessoas corriam de medo e horror procurando abrigos dentro da própria taverna, inundados por lembranças de embates e sangue rolando sem sentido nestas já esquecidas batalhas pelo orgulho e pelo ego. Quando as lâminas se cruzaram e retiniram ao som dos gritos de bravata de combatentes, elas foram seguradas por uma delicada mão acompanha de uma firme, mas aveludada voz.

– Timal dül ojjü! Parem com isso!

A voz saia de uma longa capa com um capuz que logo foi jogado para trás, mostrando os olhos amendoados dos elfos. Surpresos pela intromissão, logo perceberam que a esguia figura estava acompanhada por outra figura encapuzada, que também se revelou uma elfa. Mas, esta era diferente. Com traços mais arredondados e uma orelha menos proeminente, lembrava de certa forma, uma humana, muito bela por sinal. Esta agora, repousava sua mão sobre o ombro do gigante guerreiro.

- Parem com isso, já! Não se resolve os problemas desta forma e nem agora. Ij tajjüij dülalümil i dolii a düdoj i lümga? As pessoas comemoram a vida, e vocês querem morte? Honrado guerreiro, olhe seu inimigo e sua juventude! Sua imaturidade é facilmente perdoada por conta da impulsividade natural desta idade. Você mesmo já foi imprudente, não? E você, meu jovem, se acha experiente o bastante para enfrentar tal espada? Perceba as cicatrizes e a calma nos olhos deste homem, que já viram tantas mortes quanto há seres viventes nestas terras. Sejamos sensatos e vamos nos sentar juntos e comemorar este dia como velhos companheiros.

Sem entenderem o que se passava, abaixaram as armas instintivamente, como se estivessem cometendo algum sacrilégio ao mantê-las erguidas. Todavia, o que realmente fizera o experiente guerreiro abaixar a arma foi justamente a mão da pequena e esguia mulher de orelhas proeminentes, que sem causa aparente, fizeram seus músculos relaxarem ao ser preso por aqueles olhos e o rosto que balançava negativamente, transmitindo serenidade aos seus pensamentos. Mesmo sentindo estar errado por evadir-se de um combate pela honra, não pudera deixar de sentir a calma transmitida por aqueles olhos. Sem trocarem uma palavra sequer, ambos sentiam-se cansados como se tivessem tido um embate intelectual inaudível aos outros.

- Danü ilopü! Ae qüi ajgidi tamliarliü ij ajtamirlij! Eu já estava perdendo as esperanças! – disse Nathan, indo de encontro a eles, enquanto desviava-se do círculo humano que se formara em torno do embate.

- Sim, meu irmão! Aqui estamos!

O elfo e o clérigo cumprimentaram-se, segurando o antebraço um do outro, seguido de um longo e apertado abraço de companheiros que não se viam por um longo período de tempo.

- Danü ilopü, vejo que não perdeu o costume de tentar mudar o mundo!

- E vejo que não se cansa de se abster em nome do livre arbítrio, não é mesmo, dneimopü Nathan?

E os dois riram, enquanto o jovem cavaleiro afastava-se, frustrado. Seu companheiro de viagens tentava convencê-lo a voltar a combater, mas o desafiante sentia-se aliviado por não ter entrado em combate. Apesar de sentir-se capaz, desta vez seu orgulho foi superado pelo sentimento de auto-preservação.

- Sente-se conosco, guerreiro. Vamos apreciar uma bela caneca de vinho, que vou lhe explicar tudo.

O elfo dirigiu-se à afastada mesa onde Nathan estivera durante toda a noite e sentou-se, enquanto os outros o seguiam em silêncio e as pessoas se afastavam. Algumas chateadas com o fim do combate que talvez trouxesse um pouco de diversão àquela noite, enquanto outros agradeciam por aquilo não ter se prolongado e vitimizado mais pessoas que aquelas que realmente se confrontavam. De certa forma, todos ali sabiam que brigas em tavernas acabavam adquirindo proporções maiores do que se imaginava inicialmente, fazendo até mesmo todos esquecerem o decoro ou quem havia começado a confusão e aproveitando-se da situação para agredir algum desafeto. O próprio bardo agora estava sorridente, enquanto tocava mais uma de suas músicas, mas seu receio deixava mais baixa sua voz, e cautelosamente procurando um meio de não irritar mais ninguém.

Com todos já acomodados à mesa, o forasteiro não conseguia tirar seus olhos da face daquela que lhe passou tanta paz, somente com o olhar. Acabou por deixá-la constrangida com aquela situação que não estava acostumada.

- Sal, dilüj ne rüjji lojjieü. Qual é seu nome, nobre guerreiro? – perguntou-lhe o elfo, tirando-lhe do transe e aliviando sua companheira daquela situação constrangedora.

- Aorn, senhor! – ele respondeu, ficando em pé – Aorn, filho de Beorgar, da casa de Beor! Sou do norte, senhor.

Apesar de toda a etiqueta, Nathan percebeu o escarninho no olhar do guerreiro em direção ao elfo.

- O meu é Nathan, este é Eglair e esta é Sahadrian. Não ligue para Eglair! Ele acredita que as pessoas podem se entender somente através do diálogo. Enquanto nossa amiga, simplesmente não fala...

- Por quê? É muda? – o descendente de Beorgar perguntou em tom de chacota.

- Sim... – respondeu-lhe Eglair, que sentiu pena ao ver o guerreiro ficar desconcertado com as próprias palavras.

- Dneimopü Eglair! Vamos ao que interessa, pois nosso tempo é curto...

- Sim, dneimopü Nathan. Eu compreendo a gravidade da situação e vim o mais rápido que pude. Eu e Sahadrian tivemos contratempos, mas conseguimos chegar ainda neste dia. Espero que não seja tarde demais... Levantou todos os dados necessários, velho amigo?

- Obviamente! – respondeu prontamente – Mas, devemos pensar muito bem o que devemos fazer...

- Esperem! – falou Aorn, em um dialeto do Comum, utilizado por mercenários, mas carregado de seu sotaque nortista – Se estão tratando de negócios, por que me chamaram para esta conversa? E parem de falar esta maldita língua, pois não os entendo. Se acaso me chamaram para fazer parte do negócio, saibam desde já que meu tempo passa em paga de moedas de ouro. Não pensem que não cobrarei...

- Sei que sim, Aorn. – disse-lhe Eglair – Entretanto, devo-lhe fazer uma pergunta. Como veio parar aqui nesta cidade? Veio para trabalhar de mercenário ou está somente de passagem?

- Eglair! Dilüj gmigim lia rüjji lojjieü jüxorüj. Não precisamos discutir este assunto com ele. Podemos dispensá-lo. – disse Nathan, que logo se sentiu intimidado pelo olhar ferino e inquisidor de Aorn, enquanto passava pela sua cabeça qual seria o tamanho do espírito de luta deste homem capaz de abalá-lo. – Não precisamos dele. Temos eu, você e a Sahadrian. Para a nossa missão será suficiente.

- Não, Nathan! Não! Estamos nessa juntos. Nossos caminhos não se cruzaram em vão, afinal, a presença de nosso mais novo amigo já havia sido prevista pelo Oráculo...

- O que? O Oráculo lhe disse que encontraríamos este homem? Não vejo a razão pela qual ele deve juntar-se a nós em nossa missão, ainda mais pelo fato de que não haverá grandes ganhos para um mercenário...

A resposta de Aorn foi bem típica dele, um rosnar entre os dentes, seguido de eu olhar penetrante em direção a Nathan que novamente se intimida pela ferocidade de seu companheiro de mesa. Não por covardia, dada a experiência em batalha e a capacidade estratégica que lhe dera a confiança dos guerreiros de campanha. Mas o seu instinto de autopreservação e capacidade de analisar seus adversários traziam um sentimento de respeito pelo companheiro imposto, que exalava por seus poros o cheiro de campos de batalha, de fuligem. A sensação de estar diante de um predador, que atacava somente quando sentia-se acuado, mas com a ferocidade capaz de espantar a maior parte dos adversários somente com o olhar.

- Logo entenderá, Nathan. Aorn, eu sei que posso perguntar, pois estou diante de um guerreiro honrado, que mesmo tendo caminhado com mercenários sabe o valor da honra, então responda-nos: Como veio parar nesta cidade? Está vagando ou veio em busca de trabalho?

Aorn então voltou seus olhos para a mulher novamente, depois olhando detidamente o rosto de seus interpeladores balançando a cabeça negativamente, expirando forte e deixando claro sua impaciência.

- Como eu lhes disse, vim do Norte. O Norte Longínquo. Minha tribo foi dizimada pelos homens do oeste.

- Sub-homens? Com aparência simiesca, não é?

- Sim. Eram muitos e os caçadores e guerreiros estavam fora da aldeia. Era dia da caçada dos jovens. Eles foram todos deixados na borda da floresta para caçarem seus lobos, e nós, os mais velhos, aguardávamos o regresso. Eu observava o horizonte, vendo os acertos e os erros de cada um, quando senti o cheiro de fuligem e de carne queimando. Meu instinto me fez voltar para a planície em minhas costas. O que eu vi – Aorn interrompeu sua narrativa, demonstrando em seu rosto toda a apreensão e consternação que as lembranças daquele momento lhe causavam -, foi horrível. Ao longe, no lugar onde estaria nossa aldeia só existia uma longa coluna de fumaça. Gritei por todos os guerreiros que estavam à minha volta, e os outros nos seguiram ao nos ver correndo em direção à aldeia. Foi nosso erro. Mesmo correndo, demoramos muito e a cena que nos deparamos me traz pesadelos até hoje. Crianças, mulheres e os anciãos estavam todos estirados no chão, decapitados ou sem os escalpos. Nossas tendas ardiam em fogo. Apesar da maior parte dos nossos inimigos já terem deixado nossa aldeia para trás, ainda havia centenas deles. Milhares! Não somos covardes!

Todos na mesa sentiram-se tocados pela tristeza de Aorn, que parecia ter sido transportado para aquela cena que marcara seu coração como uma cicatriz purulenta, marejando seus olhos e fazendo-o olhar para algum lugar distante e perdido no tempo. Seus ombros tensos não demonstravam tanto sua revolta e sua impotência quanto seus punhos cerrados, em que as juntas esbranquiçadas mostravam o tamanho de sua frustração.

- Corremos brandindo nossas espadas e machados, fazendo rolar a cabeça de nossos inimigos, mas eles eram muitos! Eles se fechavam sobre cada um de nós, e arrancavam pedaços que voavam em nossa direção! Logo estávamos todos cobertos com sangue de nossos inimigos, nosso e de nossos companheiros! Fomos caindo um a um, apesar da fúria em nosso ataque.

- E como você sobreviveu? – perguntou Nathan, escolhendo cada palavra para não ferir ainda mais o gigante que agora chorava, com o rosto em suas mãos, ou pior ainda, despertando sua fúria por fazer pouco de sua dolorosa lembrança. Como que desperto de um transe, Aorn recuperou a compostura, enquanto enxugava as lágrimas com as costas das mãos. Sahadrian abaixou o rosto, quando percebeu que não conseguiria esconder o sorriso ao observar o rosto do gigante se transformando novamente.

- Eu nunca soube o que realmente aconteceu, o porquê de estar vivo. Apenas acordei, dias depois, em meio aos corpos de meus companheiros em um monte feito por nossos inimigos. Eu fui tomado pelo horror ao ter que escavar todos aqueles corpos de amigos, companheiros, irmãos... Todos os rostos conhecidos tomados pela rigidez da morte. Aves comiam partes deles! Eu achei que tinha morrido e ido ao inferno! Corri desesperadamente, por dias. Comi plantas e bebi água de poças, só para voltar a correr. Queria fugir daquele inferno. Entrei em uma floresta a oeste daqui, onde fui encontrado dias depois por alguns mercenários, quase morto. Os dias que passei ali foram horríveis. Não tinham frutos ou plantas comestíveis, somente árvores a perder de vista. Eu cheguei a caçar com uma lança improvisada, mas a visão das minhas presas fazia rememorar cada momento. Os mercenários cuidaram de mim e me ensinaram sua língua, pensando que eu era um fugitivo. Eu estava fraco demais para esboçar qualquer reação, mas logo ia me recuperando. Eu os acompanhei por seus caminhos, ajudei-os da maneira que pude para pagar o que haviam feito por mim. Fiz coisas que desonraria meu pai. Mas, meus companheiros se foram...

- Tem um detalhe que não nos disse, Aorn. – interrompeu Eglair.

- E qual seria, Aorn? – perguntou Nathan, observando a expressão de surpresa de Aorn.

- Eu não sei o que quer dizer...

O elfo apenas demonstrou que Aorn sabia do que estava falando através da expressão de indignação em seu rosto. O gigante coçou a cabeça sem-graça, balançando a cabeça negativamente e bufando. Sentiu um toque seu ombro, virando o rosto para saber de que se tratava. Encontrou o rosto de Sahadrian com um largo sorriso, que apenas meneou com a cabeça. O guerreiro entendeu e apertando os lábios respondeu positivamente, e estendeu sua resposta retirando parte do couro que cobria seu torso forte. Em seu peito havia uma marca que fez o elfo rir da expressão de espanto de Nathan.

- Mas isso é... É... – Nathan disse apontando e se aproximando de Aorn, que arredio e surpreso dava passos para trás. – É a Manopla!

- Sim, Nathan. É o signo de sua religião e também o totem da tribo de Aorn. Mas vamos. Nosso tempo é curto e ainda há um companheiro a juntar-se a nós. Ele nos aguarda lá fora.

- Mas... Mas, a Manopla! Eu não entendo... Espere. Quem nos aguarda? E por que não entrou aqui?

- É um velho conhecido, Nathan. Logo o verá e se sentirá mais aliviado dele estar ao nosso lado. Sahadrian acompanhe Aorn e saiam juntos. Ele estará seguro ao ver que está conosco. Enquanto isso, eu e Nathan pagaremos nossas bebidas e sairemos em seguida.

Aorn, sem entender o que estava acontecendo, apenas acompanhou a bela jovem até a saída da taverna. Ele não pode deixar de notar, enquanto caminhava atrás dela, o requebrar sensual de seus quadris. Pensamentos libidinosos logo invadiram sua mente, mas que logo foram afastados pela parada de sua guia. Assim que sentiu a presença dos outros dois companheiros, ele a viu apontar para cima, em direção aos telhados das casas à sua frente. Ouviu a expressão “Ah, não!” sair da boca de Nathan, enquanto apertava os olhos tentando enxergar o que a pequena meia-elfa apontava. A noite escura e chuvosa dificultava sua visão treinada, mas ele conseguia distinguir apenas um pequeno vulto sobre os telhados. Um raio acendeu a noite repentinamente, e ele pode ter um pequeno vislumbre do homem com capuz agachado sobre o telhado.

- Ah, não! Ele não! – Nathan esbravejou – Por que você o chamou, Eglair? Justo ele? Primeiro oferece ganhos para um mercenário, e agora quer me aliar com um assassino?

- Yára sermo, não devemos julgar as pessoas pelos seus atos. Pelo menos, não exclusivamente. Ele nos serviu, e serviu aos nossos no passado. E a conseqüência de seus atos é o que contou.

- Não posso concordar com isto. Você sabe muito bem o que aconteceu da última vez em que ele se juntou a nós. A vida dele se resume a sangue e aço, Eglair. Não posso permitir que ele se junte a nós.

Parecendo uma resposta, como estivesse ouvindo, os olhos do homem sobre o telhado cintilaram em um tom lavanda sob a luz de um novo raio.

- Bem, apenas vou dizer-lhe que nossa companhia se faz necessária. Tanto que quem lhe enviou foram nossos superiores, que decidiram isto depois de consultarem o oráculo. Mas vamos, perdemos muito tempo...

Autor: Fernando "Fera" Carvalho

Tema: Clérigo, Elfo, dedicado ao seu Deus.

Desafiante: Piovan




quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Entre a Sombra e a Escuridão

"... Seus olhos negros, negros olhos...
não brilham sob a luz do luar.... "







Parte I

Como de costume as moças que trabalhavam na criação de marrecos vinham conduzindo seus barulhentos pertences pela viela. O som dos grasnados podiam ser ouvidos ao longe, assim como o rastro de lama que vinham deixando, era visível ao largo. Não demoraria muito para anoitecer e os marrecos deveriam ser levados para evitar prováveis perdas, fossem essas por conta de lobos ou por algum gatuno que por ali resolvesse passar. Era um trabalho simples, embora sujo e as moças que o faziam sempre estavam com as barras de seus vestidos encharcados. Elas eram conhecidas como as damas dos marrecos; apelido dado a elas pelos guardas do vilarejo.

Essa tarefa era quase um ritual, realizava-se logo pela manhã e ao entardecer, sempre com os mesmos participantes, no que mais parecia uma grande procissão composta por algumas moças e incontáveis marrecos. Sempre pelo mesmo caminho, das pastagens de juncos, passando pela estrada do velho moinho na colina, atravessando o riacho e terminando nos celeiros do outro lado do vilarejo.

O caminho da colina era muito pouco usado, somente as moças o utilizavam com maior freqüência. Outrora o moinho servia para a compensação dos grãos produzidos no vilarejo, no entanto ele deixou de ser usado quando a produção de grãos diminuiu e as pragas atingiram a região arruinando as colheitas.

Mesmo não sendo utilizado o velho moinho ainda apresentava sua estrutura forte e elegante, a moda dos moinhos sulistas. Se não fossem os braços das velas, podia-se dizer que era uma torre no alto da colina com paredes avermelhadas e pequenas janelas brancas. Quase todo o caminho de pedras da colina estava agora tomado pela grama, restando apenas algumas pedras à mostra e um ou outro palanque, que um dia pertencera a alguma cerca; vez ou outra uma capivara de três listras era vista pastando tranquilamente em meio ao gramado.

Sempre ao entardecer as moças paravam para observar o velho moinho, enquanto os marrecos nadavam no riacho a caminho do vilarejo. Algumas nuvens no céu tingidas pelo entardecer davam ao moinho uma atmosfera romântica e bucólica, parecida com as baladas sobre castelos e palácios, onde habitavam princesas e príncipes.

A mais baixa das moças e também a mais rechonchuda, tirou as outras amigas do devaneio para que fossem embora apontando para os marrecos que começavam a voltar pela estrada. Sobressaltadas começaram a chamar os marrecos e a tocá-los para a direção correta, ao atravessarem o riacho iniciaram um duelo, borrifando água uma nas outras, em meio aos marrecos que fugiam assustados com a algazarra.

Despertado pelo som dos marrecos, Arélio fechou o livro no qual estava concentrado, ajoelhou-se na cama e olhou pela janela para ver o que acontecia colina abaixo. Do alto do velho moinho podia observar a cena, onde as moças que trabalhavam no pastoreio dos marrecos brincavam no riacho ao entardecer. Ficou ali por um tempo observando, sorrindo sozinho. Um ruído vindo de dentro fez com que ele voltasse a si. Olhou mais uma vez as moças no riacho, e voltou-se para dentro do quarto. Sentado na cama espreguiçou-se, tentou adivinhar que horas poderiam ser. Sabia que já era tarde, pois seu quarto estava quase escuro.

Aproveitando a penumbra do entardecer Arélio abriu a pequena gaveta do criado-mudo ao lado da cama e tirou uma caixinha de metal enferrujado, de formato ovalado, não maior que um palmo de tamanho. Algumas letras estranhas eram visíveis na parte superior da pequena caixa e a forma de um grifo descascado pelo tempo adornava o centro do objeto, uma observação mais minuciosa com certeza revelaria que o grifo já fora revestido de ouro, mas Arélio não ligava para esse detalhe. O pequeno relógio era presente de seu Magister e ele o guardava como um tesouro. Relógios eram objetos muito raros, uma arte quase esquecida depois das Guerras Dracônicas.

Arélio delicadamente abriu a tampa do velho relógio para verificar as horas, diferente do exterior, o interior do pequeno relógio ainda preservava sua beleza, um círculo de ouro no centro da caixa servia como base para os números, desenhados em estilo antigo, em um tom muito escuro, do lado direito superior um pequeno sol com seis raios brilhava em um tom vermelho, quase que apagado, alertando que o dia estava por findar-se, do lado esquerdo inferior uma pequena lua crescente começava a brilhar. Arélio sabia que a lua era preenchida com um diamante esculpido naquele formato e o circulo do sol era feito com um rubi, cada um dos símbolos brilharia de maneira alternada, um para o dia e outro para a noite. Vários emblemas feitos de prata ornavam o interior da caixa, mas Arélio não sabia o significado de nenhum deles. Mas o que mais poderia chamar atenção no relógio eram seus quatros ponteiros, dois para as horas e outros dois que pouco se moviam.

Arélio conferiu as horas e fechou o relógio guardando-o novamente na gaveta do pequeno móvel. Quase não era possível enxergar devido a escuridão e Arélio tateou o criado-mudo em busca da lanterna de óleo de lontra, ao achá-la riscou um dos últimos fósforos que ainda restavam na gaveta e a ascendeu. A luz preencheu o pequeno quarto, Arélio não era rico e seu quarto era simples. Uma pequena cama, um criado-mudo, uma estante improvisada com algumas tabuas, alguns poucos livros, uma mesinha de canto e um baú que fazia a vez de banco. Havia também uma pequena espada que ele mantinha atrás da porta, mas que nunca a usava, a não ser para brincar quando era criança.

Após arrumar seus pertences Arélio pegou seu gibão conferiu algumas moedas no bolso que na verdade era apenas uma e, foi em direção as escadas.

Os últimos raios de sol iluminavam o interior do moinho, criando uma atmosfera de sombras. A penumbra já tomava conta de tudo, alguns morcegos que ali faziam sua morada já saiam para a caça noturna.

O interior do velho moinho era escuro e ideal para um esconderijo contra a luz do dia, algumas andorinhas também costumam fazer seus ninhos no interior do moinho no inicio da primavera, mas estavam vazios agora, apenas os morcegos o habitavam.

Dos andares inferiores subiam os vapores da cozinha e, com eles vinham os aromas dos pães que saiam do forno.

__ Arélio! __ gritou uma voz vindo de baixo.

__ Estou indo, estou indo. __ respondeu ele descendo as escadas com os morcegos voando ao seu redor.

Desde que a casa que morava com sua avó fora misteriosamente destruída por um incêndio, Arélio e sua avó tiveram que se mudar para o velho moinho da colina. Não era uma mansão, mas era melhor que morar no estábulo da guarda.

Como o moinho não funcionava mais, ele foi oferecido pelo antigo proprietário para que não ficassem na rua.

Arélio havia estudado a tarde toda em seu quarto no alto do moinho, estava com os olhos cansados de tentar decorar uma intrigada formula mística. Embora não parecesse Arélio era um iniciado nas Artes Esquecidas. .

Ao chegar à cozinha, sua avó já o esperava com os cestos carregados de pães. Era ela a responsável pelo abastecimento da cozinha da guarda local. Ela passava todas as tardes assando pães que eram levados no início da noite pelo neto até a torre de vigília central no vilarejo.

Dona Katherin,como era conhecida, fazia os melhores pães de todo vilarejo. Dona Katherin era uma senhora de idade avançada, mas com uma saúde de ferro e uma disposição de fazer inveja.

Mas a vida não era benevolente com ela, privando-a de seus familiares, primeiro seu marido, Jah’yr que morreu em batalha defendendo o vilarejo e depois sua filha, Thássia, que desapareceu misteriosamente logo após dar a luz a Arélio.

Diziam as más línguas que sua filha havia fugido com um elfo, o qual seria o pai de Arélio.

Isso sempre se complicava, pois Arélio apresentava orelhas levemente pontiagudas, como os elfos. E quando questionada sobre o assunto, nunca conseguiam respostas. Dona Katherin não falava sobre esse assunto, para ela o que importava, era que seu neto estava lá e isso para ela era muito mais que o suficiente. Isso a fazia feliz.

__ Já esta tudo pronto meu querido, por que demorou?__ perguntou a velha arrastando uns dos cestos até a porta ao ver que o neto havia chegado. __ Ruffus esta ansioso a sua espera.

__ Desculpe... __ respondeu Arélio distraidamente.

__ Ruffus ansioso? __ pensou ele consigo mesmo __ Só se for para ir para a cova.

__ Aposto que estava lendo aqueles livros velhos e mofados, não é? __ repreendeu a avó sacudindo o avental sujo de farinha.

Arélio apenas sorriu com o canto da boca e foi pegar o restante dos cestos que estavam perto do forno.

Para sorte de Arélio ele e sua avó tinham uma pequena carroça, o único pertence que não fora destruído pelo incêndio e é claro, o velho cavalo de guerra de seu avô, Ruffus. Mas os anos de batalha de Ruffus a muito já tinham passado e, agora as únicas batalhas nas quais ele entrava era a de puxar a velha carroça colina acima.

__ Pronto minha senhora. __ disse o jovem, fazendo uma reverência à avó com um ar zombeteiro no rosto, como quem cumprimenta algum nobre importante. __ Quer mais alguma coisa do vilarejo?

__ Não, hoje não. __ disse ela enquanto recolhia algumas vasilhas pela cozinha, embora sua atenção estivesse virada para a porta.

__ Você não vai dar um jeito nesse cabelo antes de ir até o vilarejo? __ perguntou ela caminhado em direção a porta. __ Venha até aqui que eu arrumo para você.

__ Não, não é necessário... __ disse Arélio rapidamente, passando as mãos sobre o cabelo na tentativa de arrumá-los, enquanto caminhava em direção a carroça.

__ Arélio você tem que perder essa mania boba de não querer olhar para sua imagem no espelho __ gritou a velha na porta do moinho. __ Não há nada no espelho a não ser você mesmo! Desse jeito vai morrer sem uma esposa e olha que eu já estou velha e não vou durar muito. Trate de começar a se arrumar para arranjar uma noiva!

Mas Arélio não deu ouvidos e saiu com a carroça o mais rápido que pode.

Arélio tinha aversão com sua própria imagem refletida no espelho. A mera menção sobre ele ter de olhar para o espelho fazia com que ele entrasse em pânico. Ele evitava a qualquer custo o contato com seu próprio reflexo.

Isso fazia com que Arélio fosse visto como um jovem diferente e estranho. Muitos dos moradores do vilarejo costumavam zombar dele por conta desta sua fobia. Devido a este problema Arélio sempre estava como os cabelos desarrumados.

Ruffus puxava a carroça preguiçosamente ladeira abaixo e Arélio parecia não se preocupar com a rapidez com que ele fazia seu trabalho, deixando-o guiar sozinho.

O velho cavalo sabia o caminho melhor que os moradores mais velhos do vilarejo e por tanto poderia fazer o caminho como bem lhe conviesse.

__ Já esta um tanto escuro não acha velho Ruffus ? __ perguntou Arélio ao velho cavalo, enquanto olhava ao redor. __ Que tal um pouco de luz?

Ruffus apenas mexeu as orelhas em resposta e continuou sua lenta marcha.

__ Esta bem então, já que você insiste. __ respondeu Arélio colocando-se de pé na carroça.

Uma brisa soprou desarrumando ainda mais seu cabelo, mas o jovem apenas fechou os olhos e respirou fundo concentrando-se.

Arélio tirou do bolso o que parecia ser uma bolinha de gude e a colocou entre seus dedos, levantando a mão para o alto disse:

__ A limine antiquo absconditum mentis invocat ad me honorem Luminus Orbe!

A pequena esfera em sua mão piscou em um lampejo e começou a brilhar, iluminado toda carroça. Arélio então apontou para a direção da cabeça de Ruffus e a esfera brilhante flutuou até o ponto entre as orelhas do velho cavalo e parou. Ruffus agora podia ver o caminho perfeitamente com a nova claridade sobre sua cabeça. Ele apenas bufou em sinal de agradecimento e continuou a puxar a carroça, mais animado agora.

Varias mariposas do brejo apareceram em torno da carroça atraídas pela luz emitida pelo orbe luminoso. Vez ou outra uma era abocanhada por um morcego, que surgia das sombras, de forma rápida e silenciosa.

Arélio deitou-se no banco da carroça para observar as estrelas enquanto Ruffus levava a carroça na direção do riacho. O balançar da carroça na velha estrada do moinho, fazia Arélio lembrar-se das brincadeiras na cadeira de balanço de sua avó.

Assim que chegou ao riacho Ruffus foi levemente diminuindo o passo ao entrar na água, parando para matar a sede. O coaxar dos sapos e rãs podia ser ouvidos por todos os lados, inúmeros, cada um com sua peculiaridade, uns agudos e outros graves.

Arélio não tinha notado, mas desde que saíra do moinho algo o vinha seguindo à beira da estrada. Dois pequenos olhos brilhantes o observavam atentamente em meio ao capim alto.

Sorrateiramente a criatura deslizou por entre o capim e foi para a parte de trás da carroça. Ruffus e Arélio nem se deram conta de que algo havia saído do mato e entrado por baixo da carroça, cada um perdido em seus próprios devaneios.

Com uma agilidade surpreendente a criatura subiu na carroça e saltou por cima de Arélio. Duas presas brancas e brilhantes apontaram quando a pequena criatura pulou e ginchou.

Arélio não teve tempo de agir e foi surpreendido pela criatura que havia saltado sobre ele. Ele apenas teve tempo de gritar assustado, levantando as mãos em defesa sobre o rosto.

Arélio sentiu o peso da criatura, ela estava com as patas molhadas de lama e cheirava a peixe. A criatura rosnava e fungava em cima de Arélio.

Naquele momento Arélio pensou que estava tudo acabado e não tinha coragem de fitar seu agressor. No entanto, o momento começou demorar a passar e os ataques que ceifariam sua vida não vieram. Arélio começou a estranhar, ao invés de mordidas a criatura começou a farejar e lamber as pontas de seus dedos, como se procurasse algo que havia perdido. Ao entreabrir os olhos ele viu um grande nariz que o cheirava incessantemente e dois olhos curiosos rodeados por uma máscara negra. Mas foi somente quando a criatura bateu suas duas patas nas mãos de Arélio, como faz uma criança ao pedir atenção de um adulto, que ele percebeu que a criatura era Pan, seu guaxinim familiar.

__ Eu vou matar você Pan! __ gritou Arélio levantando-se rapidamente, enquanto o guaxinim pulava gritando do banco da carroça caindo sentado em uma moita de capim.

__ Vamos Ruffus! __ disse Arélio irritado ao cavalo, pegando as rédeas e batendo-as em suas costas.

O velho cavalo sobressaltou-se com o comando e saiu em marcha rápida.

__ Pan, vá para casa. Agora! __ exclamou ele furioso para o guaxinim.

Pan piscou rapidamente como se saísse de um transe e assim que a carroça saiu tratou de segui-la o mais rápido que pode.

No tempo em que a Arte florecia, seus manipuladores diziam que um guaxinim nunca seria um bom familiar, devido a sua natureza curiosa e seu estomago sem fundo. Pan, não era uma exceção, era sem sombra de duvidas muito mais curioso que o normal e com um apetite cavalar. Essa curiosidade exacerbada sempre o colocava em situações cômicas, mas era sempre Arélio que pagava por suas traquinagens.

Certa vez durante os preparativos do casamento da filha do prefeito, a taça cerimonial de casamento – nas cerimônias nos condados interioranos era um costume dos noivos fazerem um brinde a nova vida que estavam começando com uma taça. –, esta desapareceu, Pan havia pego a taça e carregado até o riacho, quando o encontraram, ele estava usando-a para por caramujos. O prefeito ficou enfurecido e jurou que o transformaria em um chapéu caso o encontrasse novamente. Arélio se desculpou pelo fato, mas não foi à festa de casamento devido ao tamanho constrangimento.

Comenta-se no vilarejo que no momento dos noivos fazerem o brinde de comemoração os convidados fizeram cara de nojo ao lembrar-se dos caramujos que Pan havia colocado na taça.

Outro fato que Arélio procurava não se lembrar foi um acontecimento que ocorreu durante a feira anual do lírio. Arélio havia ido à feira para assistir as apresentações e Pan o acompanhava. Durante uma das apresentações Pan se enfiou embaixo do vestido de uma das damas dos marrecos, após muito estardalhaço e inúmeros gritos, ele saiu, não sem antes arrancar a combinação da pobre moça.

Sem se dar por contente ele se pôs a correr com as vestes em meio à praça. Houve uma aposta para ver quem conseguia agarrar o guaxinim atrevido.

Após muita correria o prefeito conseguiu agarrar Pan quando este passava por de baixo de um banco, ganhando a aposta. Junto às vestes estava uma carta de amor escrita pelo taverneiro do Marreco de Fogo, o qual era casado. Pan estava muito interessado na carta, mas o prefeito não deixou o guaxinim ficar com ela e após muita insistência dos presentes ele a leu.

A moça nunca mais foi vista no vilarejo, dizem que ela se atirou em um poço. Arélio prefere acreditar na história que ela foi morar com uma tia em Beralta.

O taverneiro? Bem, essa já é uma outra história...

Devido a esse fato, agora todos os anos, durante a feira anual do lírio ocorre a caçada ao guaxinim, onde um guaxinim é posto para correr com uma sacola de moedas presa no pescoço. Durante os dois últimos festivais o próprio Pan fez o papel do guaxinim, dando muito trabalho aos competidores.

Logo após o riacho a estrada inclinava antes de chegar ao vilarejo, nesse ponto Ruffus puxava a carroça lentamente, como se fizesse um trabalho muito penoso. As rodas da velha carroça rangiam em contato com as pedras da estrada, dando a impressão que estavam se partindo. O relinchar de um outro cavalo na estrada, fez com que Arélio saísse de seu estado de desagrado. Rapidamente o cavalo que vinha se aproximou da carroça e Arélio a parou.

__ Salve! __ disse com voz forte o cavaleiro que vinha montado.

__ Salve. __ respondeu Arélio timidamente olhando para o chão.

__ Estava indo até o moinho para avisar Dona Katherin e você que os ciganos chegaram hoje de manhã e, que haverá festa hoje à noite. __ completou o cavaleiro.

__ Ah, obrigado. __ disse Arélio, agora olhando para o cavaleiro ao lado da carroça.

O cavaleiro olhava para Arélio como se o conhecesse de longa data, com um leve sorriso nos lábios e olhar terno.

__ E como você está? __ perguntou o cavaleiro. __ Vejo que anda treinando. Completou apontando para o globo de luz próximo a cabeça de Ruffus.

__ Eu estou bem obrigado. __ disse Arélio com um sorriso. __ Sim, tenho treinado um pouco.

__ Bom, vejo que você está levando os pães para a guarda. Então vou até o moinho para avisar Dona Katherin sobre a festa. __ disse o cavaleiro olhando para os cestos de pães.

__ Você irá ficar para a festa depois da entrega não é? __ perguntou o cavaleiro ajeitando-se na sela.

__ Vou, vou sim. __ respondeu Arélio rapidamente como se perguntado sobre algo ao qual não estava pronto para responder.

__ Ótimo, nos vemos lá então. __ disse o cavaleiro saindo.

__ Hans! __ disse Arélio ao virar-se para trás levantando na carroça.

__ O que é? __ disse o cavaleiro virando-se na sela.

__ Não, nada esquece... __ disse Arélio novamente sentando-se na carroça. __ Melhor eu ir entregar os pães.

Arélio apenas fez um leve gesto com as rédeas e Ruffus começou a andar.

O cavaleiro ficou olhando enquanto a carroça subia pela estrada.

Assim que a carroça desapareceu no alto da ladeira ele virou-se e saiu a galope em direção ao moinho.

Pareceu uma eternidade para Arélio enquanto a carroça subia a ladeira, mas foram apenas alguns minutos e eles já se encontravam na rua da ponte. A rua possuía esse nome devido ao fato que outrora onde passa o riacho havia uma ponte que fora levada embora por uma enchente. A rua da ponte era famosa por suas lojas e estabelecimentos. A vida econômica do vilarejo se encontrava nessa rua, tudo que podia ser negociado era encontrado ali, tudo que se podia encontrar no vilarejo é claro.

Com a chegada dos ciganos a rua estava movimentada e varias lojas ainda se encontravam abertas, apesar do horário, normalmente elas fechavam ao entardecer.

Os ciganos eram sempre bem vistos quando chegavam ao vilarejo e este fato era comemorado com festa.

A vida no vilarejo era muito simples e a chegada de visitantes era sempre algo a se comemorar. O prefeito fazia questão que os ciganos ficassem na praça sempre que eles apareciam.

Era costume os moradores enfeitarem a praça para as comemorações; lanternas, fitas coloridas e flores eram arrumadas pelas mulheres. Antes mesmo do anoitecer a praça já estava enfeitada e, madeira para uma grande fogueira já estava cortada e empilhada no centro da praça. Não só a praça era enfeitada, mas todo vilarejo, os moradores costumavam colocar em suas janelas toalhas bordadas com o brasão do vilarejo; dois marrecos e o lírio do brejo. Todos participavam e os moradores que viviam mais afastados eram avisados da chegada dos ciganos, para que pudessem participar das comemorações.

Ao subir a rua da ponte Arélio se viu em frente à praça. As lanternas já a iluminavam, cada qual com sua cor.

As carroças dos ciganos estavam todas arrumadas em um grande circulo em torno da praça. Embora os ciganos fossem vistos com bons olhos no vilarejo seus semblantes ainda eram soturnos e sombrios.

Muitos dos ciganos olhavam para Arélio quando ele passava e apontavam para o Orbe Luminoso que flutuava sobre a cabeça de Ruffus. Conversavam em seu estranho dialeto, tornando-os ainda mais misteriosos.

Arélio sempre tinha a impressão que estava fazendo algo errado quando os ciganos viam seus truques e isso sempre se repetia toda vez que eles apareciam. Seu velho Magister sempre o advertia para que tomasse cuidado com seus poderes e não os mostrasse para qualquer um, mas no vilarejo todos sabiam e ele nunca teve grandes problemas devido a esse fato.

O numero de ciganos nessa visita era maior que nas últimas vezes, isso significava que um grande clã estava reunido no vilarejo.

Havia muitas bandeiras sobre as carroças, com vários desenhos que identificavam os clãs aos quais elas pertenciam. Arélio tentava descobrir o nome dos clãs que estavam reunidos ali, mas a hierarquia das bandeiras era muito complexa e ele não as compreendia. No entanto sabia que era importante dado ao número de ciganos e bandeiras hasteadas.

O vilarejo estava bem iluminado e Arélio então viu que sua magia já não era mais necessária. Levantou-se na carroça e apontou para o orbe dizendo:

­­__ Cessat Effectus Luminus Orbe!

A esfera brilhante que pairava sobre a cabeça de Ruffus piscou em um lampejo e desapareceu.

Antes mesmo de Arélio sentar, quatro ciganos haviam surgido ao seu redor. Dois deles se preparavam para subir na carroça enquanto um terceiro segurava as rédias de Ruffus.

O quarto cigano, que parecia ser o chefe, fitava Arélio, com a mão no cabo da faca em sua cintura. Com um movimento de cabeça os dois homens que subiam na carroça sacaram suas facas. As luzes das tochas na rua fizeram com que as facas brilhassem.

Os transeuntes entre olhavam-se e um burburinho se formou na rua.

__ Parem, o que o jovem Arélio fez? __ perguntou a velha Margareth, parenta em terceiro grau de dona Katherin.

__ Ele não estava fazendo nada. Por que estão prendendo ele? __ perguntou outra em meio ao povo que começava a se aglomerar em volta da carroça.

Mas os ciganos não deram ouvidos aos moradores do vilarejo e continuaram a cercar a carroça.

__ Parados aí mesmo, não toquem no garoto! __ gritou um dos guardas que vinham em direção ao grupo de pessoas.

Ao ver que os guardas se aproximavam os ciganos pularam da carroça e foram em direção a praça.

Os moradores ficaram assustados e intrigados com a forma que os ciganos agiram.

Em minutos o comentário espalhou-se pelo vilarejo.

__ Está tudo bem Arélio? __ perguntou um dos guardas ao chegar próximo a carroça.

Arélio apenas balançou a cabeça positivamente.

__ O que eles queriam com você? __ perguntou outro.

__ Não sei. __ respondeu Arélio com o coração disparado.

Arélio sentou na carroça e respirou fundo, tentando entender o que havia acontecido.

Não tinha feito nada para ser atacado por aqueles ciganos.

Aos poucos as pessoas se dispersaram e Arélio seguiu seu caminho, preferiu agora ir a pé para não chamar muita atenção. Desceu da carroça e foi puxando Ruffus pelo cabresto.

Arélio não ousou olhar para trás, com medo de que os ciganos aparecessem novamente.

A sensação que sentiu ainda o acompanhava. A sensação de frieza nos olhos dos ciganos e o brilho das facas ainda o incomodavam.

A rua da ponte terminava no pilar de mensagens. O pilar de mensagens era um grande tronco de madeira onde os moradores do vilarejo postavam mensagens, podiam ser de serviços, mensagens pessoais ou mesmo recados amorosos.

Arélio passou pelo pilar, olhou vagamente para o poste em busca de algo que pudesse lhe interessar e seguiu em frente.

Logo que passou pelo poste, Arélio foi surpreendido por Hans, que estava voltando após ter levado o recado a sua avó no moinho.

Arélio olhou para o lado e viu que Hans o encarava. Tentando evitar o olhar do cavaleiro ele olhou para baixo.

__ Que história é essa de que os ciganos tentaram prender você? __ perguntou o cavaleiro enquanto olhava para trás. __ Você não andou arrumando encrenca com essa gente? __ Completou.

__ Responda Arélio!__ gritou o cavaleiro irritado com a passividade com que Arélio levava a situação.

Antes que Arélio pudesse responder, Hans já tinha desmontado e estava em sua frente encarando-o.

__ E então, o que tem a dizer em sua defesa? __ perguntou Hans.

__ Eu não fiz nada. __ respondeu Arélio com a voz contida.

Por um breve momento apenas se encararam, cada um pensando no que poderia dizer.

__ Me perdoe por gritar com você.__ disse Hans colocando a mão no ombro do jovem. Enquanto baixava a cabeça para olhar bem para ele.

__ Sabe que fico irritado quando eles aparecem. Eu já fui um deles ...

Hans parou de falar e virou de costas para Arélio, lembrando de algo que gostaria de ter esquecido.

__ Não se preocupe. Eu estou bem!__ disse Arélio puxando o cavaleiro pelo braço.

O cavaleiro olhou para ele e suspirou:

__ Está bem. Vamos. Eu o acompanho até a torre da guarda. Mas só para garantir que você não se meta em outra confusão­__ completou ele com um sorriso no rosto enquanto montava novamente.

Arélio fechou a cara e respondeu:

__ Eu não arrumei confusão nenhuma. Foram aqueles ciganos que começaram tudo.

O que eles pensam que estão fazendo balançando aquelas facas de prata em plena praça?

O cavaleiro ouviu aquilo, como se ouvisse algo do qual não estava preparado. Mas preferiu não dizer nada a Arélio. Mas como nenhum outro morador do vilarejo ele sabia o que significava as facas de prata que os ciganos portavam.

A torre da guarda ficava em um prédio no centro da vila. Era uma antiga torre que fora adaptada para servir as exigências da guarda. Em seu piso inferior ficavam os estábulos e para se chegar aos andares superiores tinha-se que passar por ele.

Arélio não gostava do lugar, pois tinha a impressão de que era assombrado. E sentia arrepios quando estava no lugar.

Mas essa era apenas uma invenção que a mente e Arélio havia criado para afastar o verdadeiro medo que ele tinha daquele local. O problema que Arélio tinha com a torre eram os escudos reluzentes que existiam no lugar. Os aposentos da torre eram em sua grande maioria decorados com escudos. Esses escudos eram polidos e refletiam como espelhos. E Arélio fazia o possível para não ter que entrar na torre.

E não entrava. Esse fato gerava inúmeros problemas para Arélio, mas ele não ligava. Qualquer coisa era melhor que enfrentar os escudos.

Por sorte ele somente levava a carroça até a torre da guarda, mas eram os funcionários que carregavam os cestos.

__ Bom senhor arruaceiro chegamos. __ disse Hans desmontando do cavalo.

Arélio olhou para o alto da torre. A lua já havia nascido e iluminava a torre dando a ela um aspecto majestoso.

__ Vou levar Tarddos até os estábulos e mandar alguém levar os cestos. Não gostaria de entrar? __ perguntou Hans.

__ Não! __ disse Arélio ficando imóvel ao lembrar-se dos escudos.

__ Vou... vou ... vou ficar aqui esperando. Obrigado.__ completou ele finalmente.

Hans olhou para ele e sorriu achando graça. Mas não contrariou a decisão do jovem. Sabia do pavor que Arélio tinha com sua própria imagem.

Momentos depois ele estava de volta à porta, com seu costumeiro sorriso torto.

__ Já dei a ordem para que venham buscar os cestos. __ disse ele aproximando-se da carroça.

Hans ergueu a toalha que cobria um dos cestos e enfiou a mão para pegar um pão, mas se surpreendeu.

__ Andou provando os pães novamente senhor ilusionista? __ perguntou Hans franzindo a testa para o jovem.

__ Não, por quê? __ intrigou-se Arélio.

__ Então o que é isso? __ disse Hans mostrando-lhe um pão roído pela metade.

Intrigado Arélio foi até o cesto, mas antes que ele pudesse levantar a toalha que o cobria, esta se levantou sozinha e outro pão roído pela metade pulou para fora.

Arélio assustado afastou-se do cesto.

Novamente a toalha se levantou e outros três pães pularam sozinhos para fora. Um atrás do outro, como uma ninhada de marrecos que acaba de chegar à água. E todos os três pela metade.

__ Espere um momento.__ disse Hans indo em direção ao cesto sacando a espada. Seguido por Arélio vagarosamente ele ergueu a toalha que cobria o cesto.

__ Pan! __ disse Arélio entre a surpresa e a certeza de que aquilo era o esperado do guaxinim.

De alguma forma, Pan havia entrado novamente na carroça e se escondido em um dos cestos. E para caber nele tinha devorado quase a metade dos pães que ele continha. Embora Pan fosse um glutão ele só comia aquilo que lhe agradasse e, comeu apenas as partes dos pães que estavam mais clarinhas. Pan não gostava de pães queimados.

Quando Pan percebeu que o cesto não estava mais coberto e que Arélio o observava ele saltou para fora farejando Arélio como de costume. Esperando ganhar alguma guloseima. Mas o que ele ganhou foi um peteleco na cabeça.

__ De um jeito nesse guaxinim senhor Arélio. __ disse Hans com a cara fechada.

Pan olhou para Hans e fungou como um nobre que desdenha de alguém sem importância. Antes que Arélio ou Hans pudesse fazer algo o guaxinim saltou e correu para dentro do estábulo.

Arélio apenas sorriu sem jeito para Hans, sem poder fazer nada.

Não demorou muito e um guarda apareceu para levar os cestos de pães.

__ Pode levar a carroça junto. __ disse Hans dando uma ordem. __ Mantenha a carroça no estábulo até voltarmos. De água ao cavalo e um pouco de feno.

__ Sim senhor! __ respondeu o guarda puxando Ruffus para dentro.

Hans virou para rua respirando o ar da noite e começou a andar.

__ Bom, vamos até a praça Arélio!__ disse Hans batendo com a mão no peito para tirar as migalhas de pão da camisa que haviam caído nele quando Pan saltou do cesto.

Arélio olhou para ele, mas não disse nada, apenas engoliu o que pensou em dizer.

__ Não se preocupe, desta vez eu vou estar com você.__ disse ele sorrindo enquanto batia no ombro de Arélio.

__ Vamos ser devorados pelos ciganos senhor matador!__ completou Arélio ironicamente indo em direção a rua da praça.

Hans apenas franziu a testa e sorriu. Arélio sendo irônico era algo novo.

Do alto dos telhados Pan observava os dois com curiosidade. Assim que Arélio e Hans viraram a rua ele se pôs a segui-los.

A praça estava animada com dança e música. A madeira que havia sido cortada durante a tarde agora ardia em uma grande fogueira.

Sons e cheiros invadiam os sentidos daqueles que ali estavam. Mulheres em seus vestidos coloridos dançavam em volta daqueles que chegavam à praça. Como em um ritual, abençoando-os com seus lenços e pandeiros enfeitados com fitas reluzentes.

Bebida e comida eram servidas aos convidados pelos ciganos e moradores do vilarejo.

As pessoas andavam animadas, conversando e bebendo. Crianças corriam para lá e para cá. Fazendo de conta que estavam em uma aventura ou uma batalha.

Uma velha senhora em uma carroça acenou com a mão chamando Hans em sua direção.

__ Gostaria de experimentar um pouco de bebida meu rapaz? ­__ perguntou ela.

__ Posso garantir que nunca provou algo assim antes.

Hans tirou umas moedas do bolso e entregou a mulher.

__ Espero que seja algo divino minha senhora. Isto está me custando uma rodada no carteado dessa noite.__ disse Hans fazendo pouco da provável cerveja barata que a velha lhe serviria.

­­__ Não seja tão insolente Hans do Clã dos ....

Mas a velha parou de falar assim que viu o jovem junto dele.

__ Ora, ora. Está acompanhado então? __ perguntou ela serrando os olhos para Hans.

__ Vou pegar mais uma caneca. Aguarde um momento.

Arélio olhou para Hans como se quisesse dizer algo, mas esse apenas balançou a cabeça negativamente.

__ Aqui está desculpe a demora. __ disse a velha com duas canecas e uma pequena barrica em baixo de um dos braços.

__ Me ajude aqui meu jovem. __ disse ela para Arélio. __ Segure as canecas enquanto abro isso.

Com um pequeno punhal a velha tirou a rolha da barrica. Um aroma doce e perfumado encheu o ar quando o liquido rubro derramou nas canecas.

__ Que cheiro bom. __ disse Arélio.

__ O sabor é melhor ainda. __ disse a velha. __ Isso é vinho de ambrillís. Prove.

Arélio tomou um gole. O sabor do vinho era muito doce. Arélio não conseguiu distinguir os sabores da fruta. A bebida era forte e ele corou devido a sensação de calor que ela proporcionava.

__ Estiveram nas Florestas Geladas? __ perguntou Hans enquanto olhava para o liquido dentro da caneca.

__ Sim. __ respondeu a velha tapando a barrica. __ Já faz mais de dois anos que a caravana esteve no norte.

Hans olhou mais uma vez para a caneca e a bebeu de uma só vez.

__ Vamos Arélio. __ disse ele.

__ Obrigado pela bebida senhora.__ disse Hans de forma ríspida entregando a caneca a ela.

Arélio bebeu o resto da bebida e seguiu atrás de Hans.

__ O que foi aquilo lá atrás? __ perguntou Arélio.

__ Nada! __ respondeu Hans duramente.

Arélio achou melhor não perguntar mais nada a ele, pois sabia que era algo sobre o passado que Hans não queria lhe contar. Se ele o quisesse ele o faria por vontade própria. Concluiu para si mesmo.

__ Então o que vamos fazer? __ disse Hans olhando em volta, como se procurasse algo. __ Estou querendo jogar cartas. Estou sentindo que hoje estou com sorte.

Arélio olhou para ele e disse:

__ Eu não trouxe dinheiro. Estou apenas com uma moeda no bolso e não vai ser em uma roda de cartas que eu vou usa-lá.

__ Está bem. Eu irei jogar e você fica assistindo. __ disse ele olhando para o um canto da praça.

Arélio olhou para a direção em que Hans caminhava e avistou do outro lado da praça um grupo de homens que pareciam estar jogando cartas.

Caminhar pela praça não era uma tarefa fácil, era como andar em uma grande feira apinhada de gente de todo o tipo. Arélio não gostava muito de aglomerações, mas quando viu já estava seguindo Hans. Na praça se encontravam as maiores tendas onde o ciganos estavam reunidos. Tudo era muito colorido e exótico, mulheres e crianças o olhavam e apontavam quando ele passava.

Sem perceber Hans havia deixado Arélio para trás.

Arélio olhou para a direção em que havia visto os homens jogando cartas, mas não conseguia os ver mais. Em meio a multidão ele havia mudado o caminho sem perceber. Estava agora em meio a um corredor de barracas, com pessoas indo e vindo, ciganos em sua maioria. Uma sensação estranha tomou conta de Arélio, algo em seu intimo lhe dizia que ele não devia estar ali.

Colocando a mão no peito, sentiu o próprio coração disparado. Lentamente para que ninguém percebesse começou a voltar.

Em meio às pessoas uma lhe chamou a atenção. Uma menina, talvez não tivesse mais que oito anos, de cabelos negros arrumados em duas tranças com fitas vermelhas e verdes.

Ela olhava diretamente para Arélio, seus olhos pareciam duas esmeraldas brilhantes perdidas em meio as pessoas que passavam.

Por um instante os dois ficaram olhando um para o outro. No entanto a sensação que Arélio sentia em relação ao lugar ainda persistia e seu coração batia mais acelerado.

__ Olá. __ disse Arélio de forma tímida.

A menina apenas piscou e comprimiu os lábios, respirando de forma ofegante como se quisesse chorar. Arélio reparou que a menina carregava algo em suas mãos, enrolado em um veludo de cor púrpura. Lentamente Arélio deu um passo a frente para falar com ela. Foi então que ela ergueu o que estava segurando e apontou para Arélio. Como se fosse lhe entregar o que carregava.

__ Isso é para mim? __ perguntou Arélio a menina.

Com os olhos lagrimejando ela balançou a cabeça em afirmação.

Arélio esticou a mão tocando no tecido, mas antes que pudesse pegar o embrulho, em um movimento brusco a menina o puxou. Arélio assustando-se apenas agarrou o tecido temendo que ele caísse.

De dentro do embrulho a menina sacou um objeto de prata, de forma ovalada e brilhante. Um espelho de mão.

Ao ver o objeto nas mãos da menina Arélio congelou. Ele não imaginava que encontraria um espelho, não ali.

Rapidamente a menina virou o espelho para Arélio. A luz da lua refletiu no espelho atingindo seus olhos. Espantado com a cena ele não teve tempo de agir, tentando desviar seu olhar. Por alguns instantes seu olhar percorreu a superfície do espelho e ele viu alguém que não via a muitos anos. Ele mesmo.

Aquele instante pareceu durar uma eternidade, Arélio não acreditava que pudesse estar vendo seu reflexo, pois a anos, o reflexo de Arélio havia desaparecido dos espelhos.


Autor: Bruno Pedroso

Tema: Ilusionista, Meio-elfo, com medo do próprio reflexo.

Desafiante: Neto